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    Sobre sacrifícios medievais

    Nilton LuzBy Nilton Luz5 de maio de 20135 Comentários7 Mins Read
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    Com a intenção de defender projeto que proíbe o “sacrifício” de animais no candomblé, um vereador de Salvador chamou o ritual de “tortura”, caracterizando-o ainda de “arcaico e medieval”, como se fosse exímio conhecedor. Mais ainda, arrogou-se a ensinar os religiosos a substituir animais por plantas – como se estas não sofressem –, garantindo que os Orixás aceitariam.

    De onde vem tanta superioridade para falar da religião alheia? É notório que o vereador – e a ampla maioria dos apoiadores do projeto – desconhece os preceitos mais básicos do candomblé. Só o racismo confere à ideologia hegemônica a confiança necessária para reduzir toda uma riqueza cultural à sua visão de mundo.

    O preconceito tem orgulho de desconhecer. O que subjaz à ideia de que as mulheres são incompreensíveis é a desculpa acionada por uma cultura machista para objetificá-las. Chamar nordestinos de qualquer estado e cultura de “baiano” ou “paraíba” é uma estratégia eficiente para menosprezá-los e exaltar a própria regionalidade. Pode-se dizer que, para o preconceito, desconhecimento é poder.

    Mas a ignorância não significa que há um vazio de caracterização. O grupo social dominante retira de sua própria cultura uma série de significados que podem ser aplicáveis ao grupo social dominado. Daí advém as palavras “medieval”, “tortura”, “sacrifício”.

    Por isso, é válido questionar a etimologia e a conotação das palavras para deixar nítido como elas representam a cultura cristã-ocidental, e não a religiosidade de matrizes africanas.

    Dama de ferro: instrumento de tortura utilizado pela Inquisição na Idade Média para obter confissões

    Sobre arcaicidade e medievalismo

    Como demonstração da vitória parcial da ciência ocidental na disputa com o cristianismo, o período conhecido como Idade Média foi considerado “obscuro”, uma vez que o domínio do aspecto religioso sobre os demais limitou o desenvolvimento social. Embora hoje parte dos historiadores reveja essa avaliação, a palavra medieval se estabeleceu com conotação negativa.

    Tomando o conceito original, é fato que as religiões cristãs se opõem à ciência em muitas ocasiões, a exemplo da proibição de doação de sangue e órgãos de fiéis e a rejeição às pesquisas com células-tronco. Mas não é possível aplicar automaticamente o conceito para outras religiões. Períodos de avanços da ciência e das artes coincidiram com o hinduísmo e o islamismo. A teoria fractal, uma das mais avançadas da matemática atualmente, foi desenvolvida por povos africanos em perfeita sintonia com seus preceitos religiosos. No candomblé de origem ketu, o orixá Ogum está ligado à ciência e à tecnologia. Isso não quer dizer que as religiões tenham relação sempre pacífica com a ciência e com as artes. Basta que não seja sempre e necessariamente tensa.

    As palavras “arcaico” e “medieval” parecem basear-se em preconceitos que veem as religiões de matrizes africanas como primitivas. Apesar da conotação negativa do termo, ele não é incorreto e, para o candomblé, é significativamente positivo. Mesmo considerando as teorias que defendem a nacionalidade brasileira da religião, as matrizes estão entre as mais antigas do mundo. Jovens eram consagradas ao vodum Nanã muito antes que outras ligações humanas com a espiritualidade dessem forma à Jeová ou Lord Ganesha. Rezas e cantigas ritualizados por jovens abiãs em terreiros são os mesmos declamados há milhares de anos, naturalmente com palavras e expressões alteradas ou ressignificadas em diálogo com as mudanças sociais.

    Se era vergonha que o vereador pretendia provocar, deve saber que produziu o sentimento inverso. Para uma religião que cultua ancestrais, respeita os mais velhos e se fundamenta na tradição, as raízes são motivo de orgulho.

    Isso não quer dizer que o candomblé parou no tempo. Tradição não se opõe à transformação, antes estabelece com ela uma fricção dialética. A tradição é conservadora, mas também se modifica no tempo e no espaço (além de modificar o tempo e o espaço). Vários rituais foram alterados ao longo da história, refletindo o contexto social. A novidade é a intenção de provocar mudanças na canetada, de fora da religião e reproduzindo valores explicitamente descaracterizadores da cosmovisão religiosa.

    Sobre sacrifício e tortura

    Oferenda é vida

    A ideia de oferenda só pode ser compreendida no contexto de uma religião que celebra a vida, sem deixar de respeitar a morte e cultuar as divindades que têm relação com ela. A oferenda de folhas e animais dá a vida, assim como as festas, as músicas, as danças, as comidas. O Orixá é chamado a reviver com os seus descendentes.

    Como dar a vida com tortura? Essa palavra não cabe no contexto das religiões de matrizes africanas. Antes, lembra as ferramentas usadas na Idade Média para punir e obter confissões de quem se opusesse ao poder inquisitorial do cristianismo – artefatos, aliás, que mostram como esse período produziu uma ciência criativa, ainda que se questione o objetivo.

    Se a oferenda dá a vida, o sacrifício dá a morte. No famoso mito bíblico, Abel ofereceu os melhores frutos dos seus cultivos como sinal de sacrifício  Depois da versão bíblica do dilúvio, Noé e seus descendentes passariam a oferecer carne. Mas o melhor exemplo é o de  Abraão, a quem deus testou o amor e a fidelidade pedindo seu próprio filho em sacrifício.

    Considerando o conceito de sacrifício, não há como discordar do vereador. Trata-se de uma oferta de dor, de perda, de flagelo. Perde-se algo importante para provar que deus é mais importante. Não é à toa que o vereador associa “sacrifício” à “tortura”. Algumas seitas cristãs admitem o autoflagelo como forma de santificação, ou seja, a libertação do pecado (outra ideia igualmente doentia, que tenta proibir o prazer ao torná-lo ilícito).

    Como explicar para essas pessoas que, no candomblé, não subimos escadas de joelhos para agradecer aos Orixás por uma benção?

    Sacrifícios medievais

    A perseguição ao candomblé está inscrita no contexto do racismo brasileiro. O questionamento à raça negra em si seria facilmente detectado como racismo. Opta-se, então, por deturpar manifestações culturais associadas à identidade negra. O candomblé sempre figurou no topo da lista.

    Nos ataques à religiosidade de matrizes africanas, a característica mais marcante das críticas é a referência cristã (frequentemente, as entidades do candomblé são “demonizadas”), mas é possível instrumentalizar outros recursos. É assim que o racismo ambiental aciona a limpeza das águas para criticar as oferendas para Iemanjá, como se desconhecesse as causas da poluição marinha. Em ambos os casos, utiliza-se a velha tática de ignorar a cultura alheia (o candomblé é a religião da natureza, sem a qual não há Orixá) e preencher o vazio com os próprios preconceitos (os demônios são criações cristãs).

    Nessa guerra cultural, as palavras se tornam armas, manejadas habilmente para impingir imagem negativa sobre as pessoas e as comunidades que se quer dominar. Mas essas palavras advém da própria cultura dominante ou da ressignificação da cultura dominada. Para que seja válida, é preciso que se adeque ao objeto de dominação e que os próprios grupos dominados reproduzam.

    Mera consequência, então, que a própria reação do grupo dominado acabe reforçando as cadeias da hierarquização, pois precisa assumir as regras impostas. Não é à toa que, na crítica ao projeto que proíbe o sacrifício de animais no candomblé, a expressão é empregada como se fosse utilizada na experiência da religiosidade. Não seria possível se referir ao projeto ou confrontá-lo sem assumir o risco de reificar um termo incorreto, mas amplamente consolidado no debate social sobre o assunto. O que se pode fazer é empregar o termo criticamente.

    O vereador não se arvora a legislar para o deus cultuado por seus pares, proibindo o peru de Natal ou o peixe na Semana Santa (não seria tortura o agonizante assassinato dos seres marinhos?). Muito menos sobre mortais poderosos, os donos de frigoríficos e açougues frequentemente denunciados por maus-tratos.

    Isso comprova que o verdadeiro alvo do projeto não são os animais, mas o candomblé. Tática semelhante ocorre na Europa, preocupada com o crescimento do islamismo e suas implicações na guerra econômica (e cultural) pelos recursos dos países árabes. Até a liberal Holanda aprovou uma confusa lei que proíbe justamente o sacrífico de animais em rituais muçulmanas (além do uso de burcas na França, por exemplo). Mas os legisladores não pensam proibir um macabro ritual católico conhecido como hóstia.

    Com o Islã, fica nítido como as três principais religiões nascidas no Oriente Médio ritualizam a carne animal. Por que questionar algumas e legitimar outras? Outros interesses estão em jogo.

    Vista a olho nu, a intolerância religiosa não faz sentido. Lidar com as mentalidades medievais que a defendem é o verdadeiro sacrifício.

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    Nilton Luz

    Residente em Salvador, 27 anos, militante do movimento negro e LGBT. Estudante de Economia da Universidade Federal da Bahia, foi Diretor de Combate ao Racismo do DCE da UFBA (Gestão 2007/2008). É atualmente Coordenador de Organização da Rede Nacional de Negras e Negros LGBT. Representa a entidade no Comitê LGBT da Bahia.

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    5 Comentários

    1. Vilma Reis on 6 de maio de 2013 3:49

      Oi Nilton maravilhoso o texto, seu texto, nosso texto, obrigada!!!

    2. Cristina Rodrigues on 6 de maio de 2013 4:05

      Excelente artigo. Fundamentado com a clareza necessária ao bom entendimento daqueles que ainda recusam-se a entender sobre o tema.

    3. Raimunda Nonata Corrêa. on 6 de maio de 2013 13:36

      Parabéns !

    4. Kiazala on 6 de maio de 2013 14:30

      Parabéns, Nilton.

    5. cacauloiola on 3 de junho de 2013 11:45

      maravilhoso texto e plenamente informativo ! parabens! estão muitos certas nessa leitura e diálogo.

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